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Queimar era um prazer

18 de julho, 2021 - por Max Franco

– Queimar era um prazer! 

É assim que começa o clássico da literatura “Fahrenheit 451”, um dos três romances que servem como referência de distopia ao lado de “Admirável mundo novo”, do Aldous Huxley, e 1984, do George Orwell. 

Fahrenheit 451 é a temperatura necessária para iniciar a queima de papel, que corresponde a 233 graus celsius.

Decerto, quando Ray Bradbury publicou, em 1953, Fahrenheit 451, o escritor estadunidense não desejava apenas lançar uma obra de ficção científica, mas fazer uma pesada crítica ao autoritarismo e à rejeição ao conhecimento, intrinsecamente presentes ao nazismo e que marcaram o pós-guerra. Na verdade, por mais incrível que pareça, Fahrenheit 451 também parece falar dos tempos atuais, ainda mais porque a ação da tecnologia é infinitamente mais potencializada e onipresente do que na década de 50.

O enredo do livro segue a jornada de descobertas e autodescobertas de Guy Montag, um bombeiro cujo trabalho é incendiar livros. Ele integra uma corporação de agentes do Estado que vigiam as pessoas e destroem os livros descobertos. Afinal, livros são vistos como nocivos nessa sociedade, pois os deixam angustiados e ansiosos. No lugar de livros, conhecimento e questionamentos, os cidadãos gastam seu tempo com programas interativos de TV, muito semelhantes aos realities shows redes sociais da modernidade. Precisa-se reiterar que, para completar o projeto de anestesiamento, há também uma boa dose de barbitúricos. Nada tão diferente dos dias atuais. 

Não se sabe se a obra de Bradbury sofre influência direta dos estudos de Joseph Campbell, que lança o seu clássico “Herói de mil faces” em 1949, mas pela estrutura do texto, daria para se inferir que o autor de Fahrenheit 451 não só conheceu a obra do famoso mitólogo, mas também fora influenciado por ela, porque a sequência da “Saga do herói” é identificável no seu enredo. 

Fahrenheit é narrado em 3a pessoa, mas é quase um texto de 1a pessoa em virtude do uso contínuo do discurso direto-indireto tanto quanto da predominância do fluxo de consciência. Em outras palavras, é pelos olhos de Guy Montag que enxergamos o que acontece naquele relato e são seus pensamentos que escutamos. A primeira parte do romance se detém no despertar da consciência do protagonista. No “Mundo comum”, Guy Montag não apenas concorda com seu trabalho, mas aparentemente se sente feliz com a sua vida. A verdade é que Montag se comporta como um obediente funcionário do governo que cumpre ordens sem questionar, exatamente como Hannah Arendt descreve Adolf Eichmann no seu “Banalidades do mal”. Tal qual Wiston, de 1984.

Não obstante, tudo muda quando ele conhece a sua jovem mentora, Clarisse, uma jovem cheia de sonhos e práticas estranhas, como a de conversar ou pensar sobre a vida. É ela que faz a pergunta que desassossega o bombeiro: você é feliz?

Adaptação para o cinema do diretor François Truffaut, 1966.

Há um fato que se torna uma fronteira na narrativa. É quando Guy observa uma mulher que se recusa a abandonar  seus livros enquanto tudo arde em chamas. Montag a vê morrer junto à sua biblioteca. O que há de tal importância na leitura que valeria preço tão alto? São estas reflexões que empurram o protagonista a seguir os rumos da sua jornada de enfrentamento do status quo. 

Fahrenheit 451 é uma distopia com final “quase” feliz, o que não é comum entre as obras deste gênero.

Entretanto o que não nos deixa tão satisfeitos ocorre quando tecemos comparações entre o texto de Bradbury e a realidade dos nossos dias. São as semelhanças que preocupam. E o medo de que o final da história da nossa geração não seja tão aprazível. Precisamos de esperança, mas este não é um artigo que se encontre facilmente em muitas prateleiras. Ainda mais quando nos deparamos com fenômenos tão frequentes do mundo moderno de negação à Ciência, culto à ignorância e recusa à leitura. É grave observar que – nestes tempos confusos – alguns valores se inverteram. A inteligência e a erudição ganham cores de arrogância e elitismo, enquanto ser burro, hoje, virou sinônimo de ser acessível, ou mesmo, pop.

A mesma inversão de valores é identificada, tanto em 1984, quanto em Fahrenheit. Identificamos quase um sarcasmo dos autores quando vemos que, em 1984, Orwell vai batizar de Ministério da Verdade justamente o organismo de estado que tinha a função de obrigar a todos a aceitar como verdadeiras as mentiras contadas pelo partido; o Ministério da Paz é aquele que faz todas guerras, o Ministério do Amor administra as torturas e o Ministério da Abundância planifica a economia dos habitantes de Oceania. Bradbury, por sua vez, chama de “bombeiros” justamente aqueles que ateiam fogo aos livros, bibliotecas e casas.

Não é exatamente o que vemos na sociedade hodierna? Há toda sorte de paradoxo: cristãos defendendo livre distribuição de armas, o “cidadão de bem” é aquele que se jacta de toda sorte de privilégios para si e pouco (ou nada) para os grupos minoritários, opinião virou verdade absoluta, o estado pode ser teocrático desde que a religião seja a aprovada pelos mandatários, as escolas devem propor o criacionismo como teoria aceitável, além de tantas mais incoerências que nem sequer vale a pena citar. A liberdade de expressão se transformou em palco para malucos e fanáticos disseminarem fake news e teorias conspiratórias. É o império do obscurantismo.

Há tanta semelhança entre estas obras distópicas e o mundo “real” que poderíamos desconfiar de que seus autores eram gênios, loucos varridos ou tinham a capacidade de viajar para o futuro.

O fato é que “Admirável mundo novo”, “1984” e “Fahrenheit 451” são metáforas convincentes sobre o nosso tempo que nos trazem reflexões pertinentes. Não seremos – todos nós – Montags e Wistons, assentados resignadamente em realidades distópicas e surreais? Habituamo-nos com o insuportável? Acostumamo-nos com o absurdo?