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A doce vida dos desavisados

17 de julho, 2020 - por Max Franco

Quem jamais iria dizer que viveríamos algo assim? Mas são  meses de  isolamento social provocado pela pandemia desse tal corona-vírus que se abateu por essas bandas e boa parte das pessoas ainda se refugia do vírus letal nas suas casas.

Eu sou uma delas.

Aqui da minha janela observo a gente que flana por aí com olhar clínico “o que buscam?”.

-Sobrevivência! – alguns dirão.

É sempre estranho quando a morte se esconde por detrás da sobrevivência.  A Vida, afinal, abriga tudo que lhe é contrária. Inclusive a Morte, que só ocorre aos que estão sob os seus domínios. Há sempre certa ironia nesse fenômeno chamado Vida, como se algum roteirista sarcástico estivesse delineando esse enredo nonsense.

Os dias passam, e eu tento manter uma rotina com intuito de manter o juízo no seu lugar. Não sei se tem funcionado. Mas, nesse longo everyday, acordo e preparo meu café escutando os noticiários. Tenho raiva desde cedo. A raiva tem gosto do café, forte, amargo, diário. Faz tempo que os mandatários dessa nação não nos inspiram nada senão amargo, na língua, na pele, na alma. Mas sigo adiante tentando bancar o resiliente. Resiliência é palavra do momento. Ao lado de “lugar de fala”, “novo normal” e “fake news”.  Há dia em que acho que eu mesmo sou uma fake news sem lugar de fala nesse novo normal.

Alimento o gato que me olha já com insatisfação. Vou trabalhar. Ponho uma bermuda levinha que combina com a camisa social tanto quanto uma vaca combinaria com uma telha. Mas ninguém vê a bermuda durante as aulas, vê? Então, sigamos nesse “novo ridículo” dos tempos atuais. A última moda new pandemy. Depois, preparar aulas. Verificar os treinamentos.  Escrever algo. Almoço comida pedida pelo aplicativo, que chega fria, mas ainda é melhor do que a fome. Leio. Trabalho mais um pouco. Ao fim da tarde, alguma atividade física para desenferrujar o corpo e desanuviar a mente. À noite, mais alguns noticiários, respiro fundo, praguejo e amaldiçoo mentalmente. Há noites nas quais dou aulas e realizo lives, palestras. Noutras, há livros e filmes. Em todas as noites, porém, brigas com o travesseiro.

Você está dormindo bem? Parabéns!

Eu talvez precise diminuir os noticiários.

Não é todo mundo que considere fácil se aninhar nas suas cobertas quentinhas quando tantos sofrem. São centenas de milhares de mortos em todo mundo. Há quem diga que chegaremos aos 150 mil só no Brasil. Pessoas próximas perderam pai ou mãe, entes queridos. Não há como evitar o medo. Preocupo-me amiúde com minha mãe e com os meus.

Sei o quanto essa pandemia me abreviou de oportunidades, de jobs e de grana. Ansiedade é meu nome do meio. Entretanto, quando penso nas perdas ainda maiores de tanta gente, fico até com vergonha de sofrer pelas minhas.

A verdade é que, quando o assunto é sofrer, nunca é apenas uma questão de “ou” mas de “e”. O que está em voga não é uma conjunção alternativa, mas aditiva. Em outras palavras mais claras, não sofro só por mim, mas por muitos. Consigo sofrer por tudo e por todos, inclusive por mim mesmo. Não há essa de sofrer singular. Sofre-se plural. É a dor do planeta que me lateja a mente, o corpo, a alma.

A raça humana ofende esse planetinha azul faz gerações. Alguém achava que ele não revidaria? Nós – humanidade – somos a caspa no ombro da Natureza. Essa divindade absoluta já reinava por aqui bilhões de anos antes de nós. Por que chegamos a pensar que nós somos os donos do morro? Por que chegamos a pensar que não haveria jamais algum revide? Talvez o covid seja apenas um avisa, o debut de algo ainda pior. A Natureza, afinal, não precisa de nós.

Li uma matéria de jornal que traz uma estatística apontando que 53% dos brasileiros estão sofrendo de  ansiedade e/ou depressão. E, na verdade, fiquei assustado com a quantidade de gente que alega que não sofre. Como assim? de que planeta vieram? Estão desinformados ou vivem alienados? Esperam abdução ou já se resignaram? É altivez espiritual ou autoengano? Afinal, quem é esse sujeito isento de ansiedade ou da depressão na realidade em que estamos inseridos?

Há quem use esperança como escudo ou antídoto. Mas esperança, quando muito, mesmo demasiada, é no máximo lenitivo. Ela alivia algo da dor, mas não cura. Se esperança curasse, já estaríamos todos salvos. Somos pródigos em esperar e deficientes em fazer. A verdade é que precisamos muito mais de feitos do que de esperas.

Aonde vão esses zumbis mascarados? Não se sabem pré-defuntos? Qual o destino dessa nova versão atualizada da marcha da insensatez? Esse pessoal deve ter o mesmo DNA dos desavisados da Lapa. Já vi gente em processo psiquiátrico agudo de negação, mas bares lotados em período de pandemia é o auge da cegueira.

Mas cegueira não é vacina, é?

É que tem gente usando máscaras nos olhos. São máscaras-vendas.

Enquanto isso, eu tento não enlouquecer ou, ao menos, fazê-lo devagar. Não – de todo – de uma vez.

E talvez diminuir os noticiários.

É que a realidade arde nos olhos.