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A arte de receber bem

29 de novembro, 2016 - por Max Franco

 

– Não há sensação melhor na vida do que deixar as pessoas felizes! Por isso, eu trabalho em hotel. Em hotéis, podemos receber e acolher as pessoas, alimentá-las bem e oferecer uma boa cama para dormirem. As pessoas devem estar sempre felizes na nossa casa.
Acho que ouvi mais de mil vezes essa afirmação. Mil? Muito mais de mil. Meu pai a repetia sempre. Era uma espécie de mantra para o velho que dedicou 40 longos anos da sua vida a hospedar pessoas. Ele começou com uma pequena pensão. Nada mais do que seis quartos pequenos com um banheiro minúsculo. Toda vez que entrava um sujeito grande na hospedaria, ele tinha que forçar o sorriso, porque ele sabia de cor a metragem do seu banheiro.
Não obstante as condições modestas, ninguém reclamava do seu hotelzinho. Sempre muito limpo. Sempre aconchegante. Era ele que atendia na recepção e fazia os pequenos serviços, enquanto a minha mãe arrumava os quartos e fazia a comida. Trabalho duro e honesto. Foi esse o meu exemplo.
Desde cedo, eu e minhas irmãs aprendemos com eles o alfabeto do ofício. Arrumamos mais leitos e lavamos mais banheiros do que a maioria das pessoas os usaram na vida. Sabemos cozinhar tão bem ou melhor – infelizmente – do que a maioria dos cozinheiros com os quais já topamos na vida. Formamo-nos hoteleiros pelo hábito diário de alojar e de bem tratar nossos hóspedes.
Meu pai nunca imaginara que o seu pequeno negócio se tornaria o que hoje é. Ele ficou cego aos 66 anos. Era um homem forte e ativo até aquela época. Nunca o tinha visto nem sequer resfriado. Trabalhava todos os dias de sol a sol, e tendo como distintivo um sorriso crônico. Até a invasão impiedosa da enfermidade. Doença que, em pouco tempo, o lançou numa depressão tão aguda que só o abandonou no túmulo. Anos de prostração e de sorrisos econômicos.
Foi nesse período que assumi a casa. Agora, maior, mais aparelhada e bem localizada. Ele tinha investido cada centavo naquele sonho. Dá para entender o sentimento que o assolou quando não conseguiu mais enxergar a realização dos seus mais profundos desejos. Não era só frustração, era morte. Uma morte em vida, prematura, adiantada.
Dediquei-me todos os dias para que ele voltasse a sorrir. Relatava cada pequena vitória. As mudanças realizadas, os projetos assumidos, os planos para o futuro… Acho que na sua mente, ele conseguia desenhar cada detalhe. Nessas poucas vezes, alguma cor voltava para o seu rosto, mas algo tênue, fraco e ligeiro.
Estou contando tudo isso porque, ontem, foi a vez da minha mãe falecer. Morreu com 83 anos, com filhos, netos e bisnetos ao seu redor. Morreu sem queixumes e protestos. Morrendo sabendo morrer.
Mas, antes, pouco antes de placidamente fechar os olhos, ela pediu a atenção de todos e nos contou um fato do qual não tínhamos conhecimento. Ela nos contou de uma das últimas conversas que teve com o nosso pai.
– Ele teve anos ruins e vocês tem noção disso melhor do que qualquer pessoa. Mas, naquela noite, em especial aquela noite, ele estava feliz. Ele estava se lembrando dos anos ruins. Anos – como vocês sabem – de fome e de medo do futuro. Tínhamos muito medo de não conseguir criar vocês como mereciam e precisavam. Depois, ele sorriu, riu, comemorou satisfeito. Se eu pudesse, teria gravado. Ele estava orgulhoso. Nós tínhamos arrendado o nosso quarto hotel. “Temos uma rede de hotéis, Felícia? É verdade que o meu nome está em todos?”
Nessa hora, todos choravam. Torneiras abertas e avalanche de emoções, todas misturadas.
– É isso que quero lhes dizer, meus filhos. Ele trabalhou e apanhou muito na vida, mas o pai de vocês partiu feliz como hoje parto. Porque, mesmo sem enxergar, ele enxergava em vocês a realização do seu sonho. Ele não estaria, hoje, feliz apenas pelos 146 hotéis que temos espalhados pelo mundo inteiro, mas, principalmente, principalmente, pela sua filosofia também espalhada pelo mundo inteiro. Aquele lema que vocês lembram tão bem e repetem todos os dias: não há sensação melhor na vida…
– do que deixar as pessoas felizes. – todos repetimos, entre soluços e risos incontidos.