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Palavras amadas

27 de janeiro, 2021 - por Max Franco

“Não seja humilde. Você não é assim tão não é assim tão importante!” (Golda Meier)

 

 

Qualquer um que pretenda um dia se apelidar de escritor sabe que despertar às três da manhã com um bocado de frase desconexa pululando no seu cérebro não garante o resultado de um texto maravilhoso tanto quanto o de uma baita ressaca no outro dia, mas, também sabe, que não tem outro jeito senão o de se render ao ímpeto produtivo e botar os dedos, e o tal cérebro atormentado, para trabalhar sem ganhar hora extra.

Foi o que me deu hoje. Agora, por sinal. Desgraça! Adoro dormir embalado pela percussão cadenciada da chuva. E está chovendo. Mas, já era. Foi-se o sono escoando como a água pelo sumidouro. Lancei à cama um olhar resignado, mas ávido dos seus favores e renunciei ao calor das cobertas como quem, muito a contragosto, abdica do abraço da mulher amada. Não vislumbrando outra opção, acometido de passado, pus-me a gastar palavras.

Há dias – e noites, principalmente – em que os sussurros dos fantasmas de gente viva me sopram nos meus ouvidos todo tipo de lembrança ou proposta. Nesta madrugada, o tema eleito pela minha mente atabalhoada versou sobre toda a sorte de vexames que amealhei na vida. Tema vasto, não? Não vai faltar quem defenda que só o que não me careceu para esse texto foi matéria-prima. Não me escuso de confessar que o cabedal de informações que poderia reunir com esta temática é tão vasto que precisaria de uma tabela excel para compilar. Por isso, preferi eleger um critério simples: asneira boa é asneira grande, pública, vexatória e humilhante. Afinal, quem quer saber de tolices privadas e discretas? Mico é migalha! King Kong é que é pop!

Não vejo tanto problema assim em purgar abertamente os meus equívocos. Afinal, assim, quem sabe, posso alcançar alguma redenção espiritual? Ou terei sido apenas eu a cometer sandices? Quem na vida não padeceu humilhações? Qual ser vivente não desfrutou momentos onde adoraria ter um poder mágico startrekiano de se teletransportar e sumir da vista das pessoas? Eu vivi. Eu sei como é. E não é gostoso não.

Aos dez anos, eu era um garoto desinteressante, ansioso, mirrado, sempre com o cabelo pedindo tesoura, que, como todo garoto da idade, queria muito-muito-muito me enturmar. A chance de lograr o objetivo me era clara: futebol. Por isso eu jogava muito. Não bem, mas muito. Não tínhamos bola na escola. Sei lá por quê. Mas, o fato era que os garotos não tinham nada além de recipientes vazios de desodorante para chutar no recreio. Algumas vezes, havia uma bola de meia. Noutras, nada. Na verdade, até tinham. A mim. Me chutar era um dos esportes mais apreciados pelos meus colegas.

Uma vez, me lembro, apareci em casa com os óculos (marrons, de aro de tartaruga! Ai!) arrebentados por um sopapo do Érico. Érico e Estênio eram os brigões que costumavam infernizar a minha vida e, habitualmente, se revezavam no hobby de me machucar. Hoje, tenho a impressão até que eles competiam para ver quem me batia melhor. Pois naquela vez quem ganhou foi o galalau do Érico e me mandou para casa com os óculos e o orgulho estilhaçados. Meu pai não gostou e aí foi pior. Ele inventou de ir à casa do truculento requerer pagamento pelo dano ao objeto. Maravilhoso! Como não bastasse ter apanhado ainda tive que me rebaixar solicitando indenização pelo vexame. Dói-me ainda hoje a solicitude do meu pai e arrogância do pai do garoto. “Quanto é para ajeitar os óculos? Só isso? Pois pegue mais e compre outros!” Ele comprou. Era dourado, mas não conseguiu nadinha folhear a ouro a minha desonra. Afinal, além de fraco e tímido, angariei na escola, onde eu estudava apenas porque o meu padrinho pagava, outra fama justificável, mas igualmente penosa: a fama de pobre.

Foi a partir daí que comecei mesmo a apanhar pra valer.

A melhor coisa que me ocorreu naquele período foi me mudar e trocar de escola.  Aquilo me soou como uma alforria, uma extraordinária chance de recomeçar do zero. Novos ares, novos colegas, novas oportunidades. Estava exultante. O futuro me abria as portas sorridente.  Até que, logo no primeiro dia de aula, eu todo cheiroso, arrumado e penteado, arrumei uma partidinha de bola com os colegas.  Sabe como é: quadra molhada, bola de verdade… Eu no chão estatelado numa poça de lama. Meus óculos dourados e empenados jogados a três quilômetros de distância após a minha queda acrobática. Belo começo! Escoltado pelas gargalhadas dos novos colegas, bati a sujeira da farda novinha, catei os óculos e caminhei célere para a classe que, é claro, toda, tinha acompanhado o simpático debut do novato atrapalhado.

Hoje vejo que aquele momento me serviu com um divisor de águas. Decidi nunca mais me expor daquela maneira ao ridículo. Decidi não, jurei.

A vida tem dessas coisas. Há quem pegue a dor e a transforme em âncora. Eu peguei e transformei em escada.

Comecei me esforçando ao máximo para ser bom aluno. Fui. Não fui brilhante. Mas, não fiz feio.

Depois me matriculei no karatê.

Tornei-me, então, um atleta tão dedicado que em poucos meses era o aluno mais graduado na academia. Eu não fazia karatê. Eu respirava, comia, lia, via, vivia o karatê 36 horas por dia. Executava os kata’s com tal apuro técnico que fazia gosto.

Foi mais ou menos nessa época que a Literatura entrou na minha vida. Influência do Paulo, que me emprestava alguns livros. Todo o dinheiro – pouco – que me chegava às mãos era para livros. Presente era só livro. Sonho de consumo: livro. Nunca andei nem de bicicleta. Só na garupa do Ricardo, uma vez. Desabamos na calçada na frente de um bocado de gente e até de uma bonitinha que a partir de então sinto que começou a me levar na pilhéria. Outro vexame. Mais um.

Mas os livros nunca geraram qualquer embaraço. Ao contrário, neles comecei a viver tudo aquilo que desejava tanto viver. Neles, viajava ao redor do mundo pelos lugares mais exóticos e charmosos. Neles, era indômito, corajoso e confiante. Neles, vivia os romances mais tórridos e vibrantes. Neles, realizava tudo aquilo que era, mas não me aventurava a ser.

Estou seguro de que fui  salvo pelos livros. E sei que soa engraçado se dizer que livros podem salvar alguém e que alguém possa ser salvo por palavras. Por certas palavras. Belas palavras. Palavras amadas. Pois o tanto li que me  fez ser. Me ajudou a ser. Me talhou. Me inspirou. E inspira até hoje.

Hoje ao olhar para trás mal, reconheço o garoto hesitante que um dia fui, porque, afinal, boa parte dos sonhos que aquele menino mirrado acalentava foram realizados.  Não me tornei jogador do Vasco da Gama nem disputei uma copa do mundo. Mas, agora tenho outros sonhos e nutro a esperança de realizá-los também. Mas não preciso garimpar muito para encontrar aquele pivete inseguro. Ele está lá. Sempre esteve. Continua, por sinal, de vez em quando, aprontando umas. Mas a diferença é que hoje eu gosto dele. Gosto dos seus olhos recheados de expectativas. Gosto da sua sensibilidade, da sua pureza, da sua boa fé e da sua mania de acreditar na amizade e nas virtudes da humanidade. Hoje, ele ainda está de pé, apesar das porradas que levou dos diversos Érico’s e Estênio’s que estão aí milhões de plantão. E torço para que ele não desapareça.

Quando escrevo, por exemplo,  resgato aquele doce garoto, aquele fracote, porque aquele menino era um menino bom e o que é bom não deve se teletransportar ou, simplesmente, sumir.  Passando vergonha, ou não. O que é bom merece resgate.