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O ocaso de Ícaro

02 de julho, 2016 - por Max Franco

Eu quero, e já faz tempo, mobilizar o mundo para tombar a Grécia inteira pela Unesco, pelo IPHAN, pela Unicef, pela entidade que for possível. Na verdade, todo o planeta deveria pagar royalties aos gregos por tudo aquilo que eles nos presentearam.

Se está ruim com a democracia, filosofia, mitologia, matemática, literatura, teatro, arte e otras cositas mas que eles nos deram, imagina como seria sem?! O mundo deve aos gregos, os quais, hoje, coitados, amargam uma odisseia mais dura e difícil de superar do que os doze trabalhos de Hércules.

Hoje, fiquei matutando sobre Ícaro, um dos personagens mais trágicos da mitologia grega. Ícaro era filho de Dédalus, uma espécie de Da Vinci da antiguidade. Dédalus era um cara multitalentoso. Foi ele, por exemplo, que projetou e ergueu o labirinto que aprisionava o Minotauro. Labirinto que acabou virando o seu claustro, e do seu filho, quando Teseu matou a fera e conseguiu fugir usando o famoso engenho do novelo de lã. Minos, o rei de Creta, não era famoso pela sua compaixão. Cabia a Dédalo, portanto, encontrar um jeito de fugir daquela prisão e da ilha.

Dédalus, então, apela para um antigo sonho da humanidade: conseguir voar. Com o afã de fugir,  ele providencia asas para si e para o seu filho, o jovem e inexperiente Ícaro. Antes, porém, de colar as asas às costas do rapaz, ele recomenda:

– Filho, não voe alto demasiado, porque o sol pode derreter a cera que cola as penas das suas asas. Nem sequer, voe perto do mar, porque a água pode encharcar as suas asas e a consequência será a mesma.

Como todo jovem, ele nem discute com o pai. Jovens querem voar. Jovens jamais pensam em quedas. Abismos não são para eles.

E, assim, os dois, pai e filho pulam para o vazio e realizam o grande sonho. Pai e filho voam pelo azul infinito. A alegria de voar, decerto, deve ter sido ainda maior do que a da fuga da prisão cretense. Voar é a síntese de toda a liberdade. Eles estão livres do grilhões de Creta e livres para voar. É a liberdade ao quadrado. Liberdade demasiada.

Liberdade, por sua vez, é coisa traiçoeira. Liberdade sem limite, pior ainda. Ícaro, acometido de liberdade, não enxerga fronteiras no seu voo. E, ignorando, os reclames do pai, ele voa cada vez mais alto, mais alto, e, fatalmente, mais perto do sol.

Há vezes –  sabemos lá por que – nas quais o Acaso sorri para os ignorantes, e o sinistro pisa a calçada, mas não invade as suas moradas. Tantas vezes escapamos, por muito ou por um triz. Muita vez, sabemos. Outras, nem desconfiamos de quão perto o infortúnio nos roçou os membros.

Dessa vez, a imprudência cobrou o preço que ela geralmente impõe aos que não escutam os gritos da razão. E Ícaro despenca da felicidade absoluta, da liberdade sem freios, para os braços impiedosos do Mar Egeu. O mar que foi seu túmulo.

Eu me pergunto intrigado. Eu cismo. Eu teimo. Ícaro estava voando. O que ele poderia querer mais do que voar? Não podia ter se dado por satisfeito? Não podia ficar feliz com a imensa felicidade que detinha? O que ele queria mais?

Ícaro é um sujeito que me desperta pena, mas não uma pena comum, daquelas que a gente tem assistindo ao noticiário. Uma pena doída na própria pele ao se ver contagiado, em tantos voos, pela mesma febre incontida. Há sonhos que cobram caro demais. O sonho azul, por exemplo, é de natureza terrível e vultuosa.

Quando penso nesse herói trágico, neste jovem arrebatado pelo voo, neste rapaz apaixonado pelo céu e pelas alturas, os versos de Cecília Meireles me vem pungente, aguda e dolorosamente à cabeça:

“Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino, frágil,
Fiquei sem poder chorar quando caí.”