https://www.maxfranco.com.br/cronicas/o-deus-da-beleza/

O deus da beleza

19 de novembro, 2021 - por Max Franco

Granada – Alhambra – Sevilha 17.11.21 (Dia 5)

– Pai, é simples: você caminha 500 metros e pega o ônibus 33. Depois, desce na 5ª parada, passa a rua e pega o 23.

– São quantos quilômetros até o Alhambra?

– Quatroo. Uns 50 minutos.

– Vou a pé mesmo.

– Pai, é uma subida…

– Está me subestimando? – disse-lhe naquela velha tentativa de gente velha que deseja provar que não é tão velha assim e, nesse afã, demonstra mesmo que é.

Porém, fui mesmo.

Depois de uns 20 minutos, já estava tentando me lembrar dos números dos ônibus.

Entretanto, a beleza do bairro de Albaicin me encaminhou o consolo de que precisava para continuar a caminhar. Albaicin é uma região tão repleta de representações culturais, arquitetônicas e históricas que também recebeu o tombamento da UNESCO como patrimônio mundial, exatamente como o Alhambra.

De maneira geral, tudo remete ao passado islâmico, o branco onipresente das construções, os detalhes mouriscos, os mosaicos aqui e ali, os arabescos… Tudo tão bonito que – quase – me esqueço que os meus pulmões pediam arrego e cadeira.

Minha filha tinha dito 50 minutos. Não foram. 50 minutos é, definitivamente, uma projeção otimista, quase usainboltiana, para um sujeito de 51 anos sem grandes condicionamentos físicos.

O pior, para a minha dignidade já em frangalhos, era ver todo senhorzinho de 87 anos me ultrapassando com um olhar blasé: “Quem manda ser sedentário?!”

O importante é que cheguei ao Alhambra e, enfim, pude contemplar seus célebres predicados.

O Alhambra estava no top five dos lugares que estava futurando conhecer. Nos últimos anos, este top five caiu para top two, mas, rapidamente, outros 3 tops assumiram os seus postos. O Castelo de Tomar, no norte de Portugal; o Palazzo Sforza, em Milão e o Alhambra, em Granada eram desejos de “consumo” já fazia alguns anos. Todos bateram as expectativas, mas o Alhambra, de fato, tem algo de especial.

Li alguns livros, nestes últimos anos, que me aguçaram a curiosidade sobre esta fortaleza islâmica de existência milenar. Preciso citar, em particular, “A mão de Fátima” e “A rainha descalça”, ambos os livros do autor espanhol, Idelfonso Falcones.

Alhambra, “a vermelha”. Há registros, entretanto, que a sua cor original era branca. A atribuição de “vermelha” teria mais a ver com todo o sangue derramado para que fosse erguida. Nada muito animador para um sujeito pensar justamente depois tanto esforço para alcançá-la. Contudo, a impressão que se materializou na minha cabeça ao ver e contemplar o Alhambra foi a seguinte: eles quiseram criar o Paraíso.

É claro que não sei como é o Paraíso (e está meio que assegurado que acabarei mesmo sem saber), todavia, a imagem de Éden que eles produziram é bem convincente. Nem no Castelo Neuschwanstein, em Fussen, na Alemanha; nem no Palácio de Schonbrunn, em Viena; nem mesmo no Palácio dos Palácios, Versailles, encontrei jardins tão suntuosos quanto no Alhambra. Não pela magnitude, mas pela delicadeza dos detalhes. O Alhambra não o oprime tanto quanto outras grandes fortalezas espalhadas pela Europa. O Alhambra nos convida a sentar e contemplar cada ângulo que nos oferece.

Quem me conhece, sabe que já fui religioso. Outrora, noutra vida. Católico tipo santarrão, missa quase que diária, reza cotidiana, terço e tudo mais. Faz alguns anos, porém, que não professo qualquer fé. Não me acho, por isso, nem pior nem melhor do que ninguém, mas me aborrece um pouco quando querem me convencer de que sou menos “algo” por esta falta de crença metafísica.

– Essas coisas que valoriza, professor, todas um dia acabarão e serão esquecidas!

Ao que me ocorre dizer “igual aos seus deuses e suas crenças. Por sinal, Thor, Osíris e Zeus, um dia, foram entes superiores de algumas culturas poderosas. Hoje o que são? Lúcifer, nesses anos do Senhor, é um seriado.” É o que penso, mas não digo. A quem desejaria convencer? Convencer cansa e não serve para coisa alguma. Quero vencer sem convencer. E que cada um que siga convicto do que bem deseje.

A verdade é que, mesmo sem ter religião, ainda sou um devoto. Um devoto da beleza. Não há nada que comova tanto quanto a beleza. E quando falo “beleza”, não estou falando do clichê “beleza interna”. Ninguém vê a alma de ninguém, até porque ninguém sabe onde se localiza essa tal de alma. Ninguém vê um ser humano por dentro e, se visse, não gostaria. Por dentro, somos um saco cheio de sangue, veias, ossos, órgãos e material a ser excretado. Ninguém é charmoso por dentro.

O que sou, então? Sou um adorador do belo, a quem Wilde chamava de “esteta”. Qual a minha fé, doutrina e inspiração? A beleza.

A beleza do Bolero de Ravel, dos poemas de Pessoa, do pôr do sol sobre o mar de Tibau, do sorriso da Rebeca, do riso do meu filho, Arthur, de uma tela de Modigliani, de uma escultura de Michelângelo, de um prédio de Calatrava, de uma obra de Hemingway, de um bosque perfumado, de um prato cuidadosamente preparado, de um ato espontâneo de generosidade ou compaixão… Poderia passar horas enumerando tudo que me leva às lágrimas de comoção pela contemplação da beleza. Wilde dizia que só pessoas muito superficiais não julgam pela aparência. A beleza é absoluta, ele dizia. Não porque deva ser absoluta para todos em todos os momentos e em todos os contextos. A beleza é absoluta porque não precisa de explicações. O belo é belo em si.

Porque não há nada nem ninguém que eu ame que não seja pela beleza. Da mesma forma que não há nada ou ninguém que não despreze que não seja pela feiura, pelo ridículo, pela bizarrice que denota.

Não é ódio, sabe? Hoje não odeio mais ninguém. (Nem o presidente e seu séquito, os quais merecem a mesma reação de quando pisamos em algo que não devíamos!). Hoje, não penso mais em quem, antes, me sugeria rancor e animosidade. É que, depois de tudo que vi e vivi, a minha memória RAM não tem mais espaço para quem não me agrega mais nada. Há gente importante e desimportante. E somente o primeiro grupo pede atos e pensamentos.

Foi embebido dessa beleza que desci de volta para a Gran Via – no ônibus 23. Envolto numa espécie de epifania, costurando os fios da memória dos lugares e momentos que me comoveram pela respectiva beleza: as praias do meu Ceará, o mar de Noronha, as cavernas da Chapada Diamantina, as cataratas do Iguaçu, as ruas de Ouro Preto, o sol da meia-noite sobre o Báltico, os monumentos de Budapeste, os castelos da Eslovênia, o pôr do sol de Mikonos, os alpes suíços, as obras de arte do Louvre, Uffizi, Prado, Van Gogh e Vaticano, o verde da Irlanda… e – claro – toda a emoção que senti ao estar onde quis estar ao lado das pessoas com as quais quis estar. Com aquelas pessoas que amei e com as pessoas que amo.

Não há o que eu possa fazer sobre o meu passado. Há coisa que me desperta lágrima amarga e coisa que me desperta sorriso doce. Há, também, aquelas que me inspiram risos emocionados ou lágrimas de tanto rir. Assim é a vida. A gente nem sempre acerta. Nem tudo aquilo que fazemos é belo. O que é uma pena. E, de fato, sinto muito. Mas – agora – me resta apenas este frugal instante. Este aqui entre as minhas mãos. Ao lado das pessoas com as quais compartilho o hoje da minha vida. Resta-me, ao menos e dessa vez, tentar ser o melhor possível. Nem sempre dá certo. O que também é uma pena. O que posso pedir caso pudesse pedir algo aos que enviei ressentimentos? Que não ressintam. Que me concedam esquecimento tanto quanto mudez. É o que faço, juro. Acordo e sigo para a Vida me esquecendo de uns, me lembrando de outros. Por quê? Porque mesmo que o grotesco faça parte de nós e do nosso pretérito, devemos perseguir a beleza. E, para tal, é a deslembrança que funciona como melhor homenagem. É a concessão generosa de morrer para alguém e de ter alguém morto para você. Não é simples assim se concluir que mortos devam ficar realmente mortos. Já os vivos que amamos, mas faleceram, esses sim, merecem a honras, lembranças e afetos. Todo mundo precisa saber a hora de morrer para alguém e de morrer alguém para você. Não é matar. É morrer alguém. Para você. Sem desejos de vingança. Sem pragas nem comemorações. Apenas o bom e velho silêncio.

Mas, apesar de tudo isso e por causa de tudo isso, a Vida pode ser bela. Porque, como tudo de belo que existe, ela é finita e dura pouco.

 

Cheguei no apezinho da Di perto das 13 horas. Ela tinha preparado um risoto de frango, queijo e bacon que estava saboroso. Devorei-o com uma taça de tempranillo. Não demorou para estarmos na estação rodoviária. Nosso itinerário fora pensado por ela: Sevilha, Viena e Praga. Mais uma vez com a mochila nas costas. Mais uma vez ao lado de quem amo. Mais uma vez fabricando lembranças. Mais uma vez em busca do objeto da minha devoção: a beleza.

 

Vita brevis.