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O andarilho

02 de julho, 2020 - por Max Franco

Há dessas coisas que passam pela cabeça nesses dias pandêmicos.
Hoje me ocorreu que meu pai era um caminhante.
Ele se aposentou antes dos sessenta anos, pré-envelhecido pelos assaltos do tempo. E vivia a maior parte dos seus dias meio isolado. Digo “meio” porque, pela manhã, muito cedo, ele saía para caminhar alegando que era para fazer compras. Ao menos era nisso que eu acreditava.
Hoje, depois de séculos de pandemia, enfim descobri o que de fato ele fazia.
Nós morávamos na Parangaba, onde ainda hoje vive a minha mãe. Meu pai caminhava até o Montese para fazer compras. Às vezes, frutas. Às vezes, carne. Nunca entendi por que ele precisava andar para tão longe para conseguir o que poderia fazer no nosso mesmo bairro.
Hoje, entendo.
Entendo porque me vejo fazendo o mesmo, procurando na geladeira o que não existe, torcendo para que acabe o pão, o requeijão, a escova de dentes.
Para quê? Simples: para ter um motivo para sair, muitas vezes caminhando, a fim de devorar os quilômetros, ver as gentes, respirar a cidade.
O isolamento pode ser tóxico. O confinamento pode até viciar. Um ser humano pode acabar se aceitando ser um bicho de toca, encasulado, enclausurado, exilado no seu cubículo tácito.
Mas, onde se esconde o nômade que habita dentro nós? Ele não nasceu para subsolos, nasceu? Ninguém quer subviver apenas.
É isso que descobri do meu pai falecido há vinte anos. Que ele queria mais do que caminhar quilômetros para fazer compras. Meu pai caminhava por rebeldia. Porque a vida não pode ser apenas um quarto, uma casa, um lugar.
Meu pai caminhava porque a Vida não tem endereço