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Céu e inferno
28 de dezembro, 2025 - por Max Franco
Talvez seja uma tendência comum entre os mortais que as festas de fim de ano, o fim de um ano e o começo de outro, a troca de um mero dígito em um calendário… tudo isso, muita vez, nos empurra os ímpetos de realizar exames de consciência sobre ano ou anos passados, como também de se propor aos tais projetos de ano novo.
Eu até tento não sê-lo, mas faço parte um bando e também estou malogradamente inserido nos contextos nos quais estou. Mais do que sou, somos. É isso, apenas isso e tudo isso. Até quero ser indivíduo, mas sou alcateia mais do que cogito e reconheço. Por isso, sou também contagiado pelos meus coetâneos e acabo imitando-os por mera falta de personalidade ou por busca de aprovação externa. A gente é meio infantil mesmo.
Sobre as promessas para o ano vindouro, consegui escapulir da efeméride. Mas, do exame de consciência…
Para Schopenhauer, a memória funciona como um filtro seletivo que retém as dores e os arrependimentos do passado com mais intensidade do que as alegrias. Viver ruminando esse sofrimento é inútil, pois o passado não existe mais. O filósofo sugere que a sabedoria reside em aceitar o passado como “morto” e focar a existência no presente, a única realidade efetiva. Pois eis uma sugestão que deveríamos acatar com maior aceitação: focar no presente.
A verdade é que tem dia que a cabeça da gente segue o caminho que ela própria cisma em trilhar. E mais do que dias, há noites.
Onde estarão aqueles que povoam a minha mente? Como estarão? Ainda se lembram daqueles tempos vividos juntos? São tempos tão vívidos quanto eu os vejo? Lembram como fossem ontem? Lembram como se fossem há séculos? Não lembram? Eu me lembro muito e com lembranças de muito megapixels. Lembro mais do que deveria.
Há homenagens que fazemos àqueles que um dia compartilharam algo conosco; a primeira delas é pensar nestas pessoas; a outra é se emocionar de novo. E eu que me dizia quase um Spock de tão frio e objetivo décadas atrás, hoje me emociono com tanta coisa. O que é isso, efeito retardado?
Não obstante toda essa cafonice melancólica e nostálgica, uma coisa é certa: há sempre pessoas nos melhores e nos piores momentos. Gente sempre é o nosso maior celeiro de alegrias e tristezas que teremos na vida. O erro – me parece – está sempre na expectativa. Sabe aquele sujeito que não promete nada e acaba entregando tudo? Este é o melhor incidente da vida. É quando nos surpreendemos com virtude alheia. O susto da boa fé.
O problema é que, na maioria das vezes, a gente promete tanto, se autopromove em demasia e faz muita propaganda dos nossos pretensos predicados. Entretanto, nem sempre o nosso delivery é tão competente assim. Somos apenas pessoas. E pessoas são plenas de debilidades, vícios e enganos. Pessoas são capengas de espírito. E capazes dos maiores heroísmos. Pessoas são assim, elásticas.
E eu sou pessoa.
Nós somos.
Somos bando de pessoas convivendo e coexistindo em um mundo e numa vida coberta de imperfeições e aspectos limitantes. Decerto iremos nos ferir muitas vezes na primeira ou na segunda esquina. Decerto vamos frustrar e nos frustrar. Decerto vamos nos acotovelar no afã de pegar o mesmo objeto de desejo. Decerto vamos nos abalroar e atropelar e passar por cima um do outro com ou sem cerimônias.
E – certamente – uma ou outra vez, seremos a salvação de alguém. O ombro amigo, os olhos nos olhos, o afago necessário, a saudade, a saudade, a saudade. Certamente, de vez em quando, temos a chance, a maravilhosa chance, de ser a alegria do encontro de alguém, a corrida para o abraço, o sorriso certo, o riso solto, as melhores e mais poderosas reminiscências.
Se eu pudesse escolher, e até certo ponto posso, adoraria fazer parte somente do rol das memórias felizes de alguém. Infelizmente, sei que não sou. Torço por perdão pelo mal jeito, pelas palavras mal ditas, pela omissão mal feita… Mas, como dizia Schopenhauer…
E as memórias que contruo hoje, tenho controle absoluto sobre elas?
Eu já tenho idade para saber que não tenho controle absoluto sobre nada.
Resta-me tecer cada dia com os melhores fios que tiver à mão e da melhor forma que puder, rogando para não ferir ninguém, mesmo, tantes vezes, ferindo.
Tem vez em que eu acho que a pessoa que mais preciso perdoar sou eu mesmo. Ou não…
Eu tentarei me lembrar da maioria com sentimentos bons. Dos demais, tentarei não me lembrar. Espero, então, que aquela música te lembre de mim com um sorriso, ou aquele filme, lugar ou poema. Ou ambos. Espero, profundamente, que aquela música toque no bar e você se lembre de mim, balance a cabeça com o assalto daquela boa memória, você ria sozinho e balbucie: aquele cara… Aí, naquele momento, estarei, nem que seja por um segundo, ao seu lado novamente naquela bela e intensa memória.
Porque somos pessoas, céu e tormento recíprocos, ou Paraíso e Inferno alheios e mútuos. Somos pessoalmente pessoas.
Olha aí: talvez eu tenha encontrado, sem procurar, uma boa proposta de ano novo?

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