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Do que me lembro

05 de junho, 2023 - por Max Franco

Talvez seja sinal de velhice olhar para trás e lembrar-se dos detalhes mais irrisórios.
– Mas, professor, esse tipo de discurso acusa sua idade e o mundo corporativo linkediniano odeia grisalhos.
– Sei, mas não há shampoos-tinturas para a alma. Nem sequer os quero para os cabelos ou barba. Sou aquele que sou e sei aquilo que sei. Não vou fazer finta de juvenil se sou sênior. Usei kichute amarrando os cadarços na canela, não tenho como negá-lo. Na juventude, pochete à cintura. Nada pode mudar isso. Não há maquiagens nem intervenções cirúrgicas que alterem a minha RG. A data é aquela. Nada vai mudá-la.
– Mas pega mal nos doismilevintetrês ter mais de…
– De 23, meu caro! É pecado grave lembrar-se, como se fosse ontem, do acidente do Senna, de onde estava no 11 de setembro, da final de 2002…
– E você lembra?
– Como se fosse ontem.
– Mas não o diga. Pega mal…
– Talvez hoje seja o maior pecado é ter nascido antes do que deveria, antes do que o mercado aprova. Mercado – como sabemos – é aficionado em colágeno.
– Você é um caso perdido.
– Pois deixe-me contar outra coisa, caro interlocutor tão preocupado com a minha faixa etária:
Eu era um meninote de dez anos. Meu pai saía para trabalhar e sempre lhe pedia a mesma coisa:
– Pai, me traz alguma coisa da rua.
Ao que ele sorria um sorriso silente, mas cheio de promessas.
Eu passava o dia inteiro fazendo as minhas coisas de menino e, de vez em quando, olhava para o portão para saber se ele havia chegado. A espera por si só já era uma delícia.
A “coisa da rua” nunca era algo de encher os olhos: umas balas de hortelã, um pirulito de caramelo do zorro ou algumas revistinhas em quadrinhos do Pato Donald ou do Homem-aranha. Porém, eu amava recebê-las. A “coisa da rua” era sempre revestida de surpresa ou apenas da satisfação da novidade ao fim do dia.
Eu gostava mesmo era das revistinhas. À época, havia um sistema em algumas bancas de revistas que permitia que os clientes trocassem os gibis por outros com um pagamento pequeno. Hoje, talvez, uns 3 ou 4 reais por revista. Logicamente não eram revistas novas e, por isso, era bastante comum que viessem revistas que eu já tinha lido. Entretanto, não me lembro de tê-lo dito ao meu pai. Mesmo que ele trouxesse a mesma revista várias vezes, eu não reclamava. Afinal, era uma “coisa da rua” e “coisa da rua” sempre é legal. Ele levara minhas revistas antigas e passara alguns minutos negociando a fim de trocar por outras. Como eu denunciaria as repetidas depois disso? Eu as lia, relia e relia.
Deve ser ancorado nestas lembranças que – hoje – eu tenha o mesmo hábito com as pessoas que eu amo. Não posso ver nenhum troço na rua que eu saiba ser do apreço dos seres que são destinos dos meus afetos. Pode ser a coisa mais tola, mas costumo adquirir e levar. A maior alegria ver nos seus olhos aquele brilho de alegria que, outrora, decerto eu ostentava.
A verdade é que “a coisa da rua” não é o que mais importa. O melhor é saber que foi lembrado por alguém que o ama.
O que mais importa é sempre o amor que vai e que vem. É o amor que se tem.