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A onda

02 de julho, 2023 - por Max Franco

– Pai, você gostaria de voltar no tempo para algo que já viveu? – me pergunta o garoto no alto da filosofia dos seus 16 anos.

Eu penso por dois segundos e lhe respondo:

-Não.

– Você não tem saudade de nada, pai? – me interroga ele meio surpreso.

-Saudade não é vontade de voltar no tempo. Saudade é reconhecimento de que algo no seu passado foi valioso, mas nada é mais precioso do que o agora.

-Não sei se entendo.

-Você tem 16 anos, filho. Com 16, é difícil mesmo de entender. Com 16, a gente tem muitas certezas. Depois, com os anos, as dúvidas vão nos trazendo alguma sabedoria.

-Dúvidas trazem sabedoria?

-Principalmente as dúvidas. Um sujeito limitado é sempre alguém com muitas certezas absolutas. O sábio é aquele que duvida, pondera, reflete, pensa e repensa. Algumas coisas na vida, aprendemos com estudos, leituras e teorias. Outras, aprendemos com a experiência. O momento mais importante é sempre agora. Para mim, nada no passado importa tanto quanto estar aqui com você diante do mar, tomando essa água de coco, com a nossa cachorra aos nossos pés. O fato é que nada é. Tudo sempre está!

Eu não sei se ele entendeu. Mas ficou calado entabulando as próprias cismas.

Eu poderia ainda lhe dizer tanta coisa. Poderia lhe falar da impermanência das coisas. E que a vida não é planilha excel toda calculada, parametrizada e aferida.

-A Vida, filho, é surf!

-Entendi nada.

-Está vendo aquele cara? Aquele que está esperando a melhor onda para surfar? Você acha que ele controla a onda? – digo, apontando para um surfista.

-Ele caiu. Mas ele podia ter continuado de pé.

-Podia. Mas ele caiu porque a onda é troço imprevisível. Onda é de natureza temperamental.

-A vida também?

-A Vida também. Mas a gente tenta controlá-la, não é? Fazemos de tudo para controlar as contingências, os acasos, os imprevistos, os sinistros. Queremos ter tudo nas mãos o tempo inteiro. Porém a Vida é caos, por isso, onda.

-Então não adianta tentar controlar nada? É só seguir o fluxo e tentar se manter de pé?

-Bela pergunta. Podemos e devemos tentar controlar. Contudo, antes de tudo devemos saber que controlamos pouca coisa. A verdade é que não ficaremos sempre de pé. A onda vai nos derrubar mil vezes e seremos jogados lá no fundo, vamos sangrar nas pedras e, se tivermos alguma sorte, certa competência, conseguiremos voltar à superfície.

-Para outra onda?

-Para outra onda, porque tudo é fluxo, é fluido! Mas aí seremos mais fortes. Teremos cicatrizes e elas nos farão mais resistentes.

– O chão que pisamos…

– Líquido. A maior prova é que estamos aqui diante do mar. Estamos seguros? Parece que sim. Mas isso é apenas uma ilusão de segurança. É a pretensão de que temos controle sobre tudo, mas não temos. Se houvesse um tsunami, por exemplo, ou um arrastão mais agressivo…

– Então se a própria terra fime não é tão firme, o surfista surfa duas vezes cada onda.

-Faz sentido!

Ele ficou em silêncio de novo. Achei que ficou com medo. A Vida, muita vez, nos empurra esse medo. A vida, tal qual o oceano, pode ser profunda, aterrorizante, imensa e repleta de mistérios.

-Porque tudo muda o tempo todo no mundo. Porque nada do que foi será. Como dizia o grande filósofo Nelson Mota na música do Lulu. A gente até deseja que algumas coisas sejam perenes, rochas angulares toneladamente fincadas nos nosso ideário mental, moral e afetivo. A gente até fantasia paradigmas, elege princípios, cria objetivos, sempre para acreditar que existe abaixo de nós, de fato, algum chão para pisar. E que esse chão seja firme. É a eterna busca por segurança e controle. Por uma rocha debaixo dos pés. Entretanto, enquanto se vive, debaixo dos nossos pés, tudo é onda. É um grande e líquido porvir. Porque Vida é impermanência!

-E o que isso tem a ver com saudade, pai?

-Eu não quero viver o que já vivi, filho. E olha que já estive em lugares que me fizeram agradecer pelos meus olhos e sentidos. Já estive com pessoas tão especiais quanto esses lugares. Já tive momentos tão únicos que justificariam uma vida inteira.

-Então? Não quer tê-los de novo?

-Não. Quero ter outros. Até porque não há retornos na vida. A Vida é sempre ida, entende? Vida é sempre um trânsito qualquer. Mas  em contínua mudança. Essa é a única constante, a transformação. Nada é. Tudo sempre está. E estamos aqui, agora, nesse lugar, nesse momento que jamais será repetido, por isso é tão único. Eu amo você, meu filho. E amo estar com você. Amo conversar essas coisas abstratas e nonsense com você. E quero estar mais um milhão de vezes, porém nem sei se estarei vivo amanhã. Por isso, quero hoje, agora, que esse momento seja feito de ouro. Amanhã terei saudade desse exato instante. Mas jamais vou tê-lo de novo. Por isso, é especial, compreende?

-Não sei se entendo. Mas acho que vou entender um dia.

-Claro que vai. Você é esperto.

-Eu te amo, pai!

-Eu te amo, flho!

E o surfista completou a onda depois de um tubo performático e riu comemorando.

Nós batemos palmas e ninguém entendeu o motivo.

Só nós.