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Presença de espírito

02 de abril, 2016 - por Max Franco

 

               Ditado pelo espírito de porco Muriel (para Homero Gurgel, o escriba desagradado)

 

 

– Matei treze ou foi dezessete? Não estou seguro. Sei que não foi pouca gente. – disse Tião Marreta abocanhando um pedaço de sonho, creme lhe rolando pelo queixo marcado por cicatrizes.

– E para completar quatorze… ou dezoito, quanto você pede? – perguntou o homem de óculos escuros.

– Depende de quem seja, moço! Se for cidadão ordinário é mais barato, porque esse povo é mesmo do tipo morredor. Já se for figurão, bicho endinheirado, com cobertura de proteção e tudo, carece de mais engenho e, por isso, fica mais dispendioso, não é? Tudo tem a ver com a dificuldade.

– Então, vai ser merreca porque esse é fudido. Você vai despachar é de graça. – brincou o homem dos óculos escuros.

– Moço, de graça-de-graça ninguém faz nada! Todo mundo tem seu preço. As pessoas de valor só são mais caras. Mas a gente faz uma remarcação pro senhor. O pagamento é peibufo adiantado, né?

– Peibufo adiantado.

– Pois eu faço por dois!

– Dois?! Faz uma liquidação aí, Tião!

– Não é disso que estamos falando, de liquidar?

– Você entendeu, Tião! Lembre-se que esta encomenda é só uma lascada da vida, um tipo liso que deixou de me pagar umas contas.

– Pelo que o moço está me oferecendo, estou achando que o liso aqui é o senhor.

– Olha o respeito, Tião, que não lhe dei essas liberdades!

– Pensei que o moço gostava de tirar umas brincadeiras… – disse o matador massageando a sua arma exposta sobre a mesa da padaria. Uma velha marreta que mantinha desde o tempo da juventude.

– Gosto. Gosto não. Adoro brincadeiras. Eu que estava zoando com você! – disse o outro observando os movimentos do assassino profissional que estava contratando. – Vamos voltar pra negociação! Que tal milzim? Pago agora.

– Vou lhe dar essa consideração pela velocidade do seu pagamento. Me passe aí a grana e o serviço.

Foi aí que o homem de óculos escuros lhe passou toda a ficha do indivíduo que queria morto. Ele só não disse que o alvo seria, de fato, a sua irmã caçula.

 

 

*  *  *

 

 

Não há muitas coisas debaixo do céu que venham de graça. Basta um tiquinho só de experiência de vida para se dar conta que, sobre a face da Terra, o sistema que funciona é o da troca. Até a criança mais desenxabida sabe. “Se me der isto, eu lhe dou aquilo!”. Como dizia meu velho e vil pai: “Um por todos e todos por quem pagar melhor!”. Nada de bom vem fácil ou de graça. Grátis mesmo é só enganação ou desgraça. De graça mesmo, só desgraça.

Apelido, por exemplo, nunca vem levianamente. Nem apelido vem de graça. Apelido que pega é apelido pedido. Isso mesmo: tem gente que pede apelido. Tião Marreta foi um que não ganhou esse apelido gratuitamente.

Por sinal, gostaria de declarar que, desde o começo da inscrição dessas toscas palavras teria preferido não me deter em dados biográficos por acreditar – firmemente – que o biografado não seria digno de biografia. Tião estava milhares de quilômetros distante de ser dotado de estatura moral ou intelectual que justificasse o esforço. No entanto, como deixei claro desde o início, esse relato me é ditado por uma desgraçada de uma alma penada que insiste em que eu enverede por essa malfadada trilha. A propósito, vou me permitir fugir do protocolo dos registros ditados por espíritos para confessar que só me detenho nessas crônicas – exclusivamente – porque o filho duma égua desse encosto não me deixou em paz até que eu, que nem sequer sou adepto ao espiritismo, o fizesse. Nem em alma, acredito! Creio apenas que há mais gente disposta a vender a sua alma do que gente disposta a comprá-la.

Adoraria também descobrir a quem poderia apresentar formalmente os meus protestos porque sou um grande defensor do estilo, da gramática formal e da estética, portanto, fico indignado pelo fato de acreditar que visagens despreparadas e sem o devido talento para a Literatura não deveriam ser autorizadas a infernizar a vida dos vivos coagindo-os a escreverem em seu lugar. Imagine a chateação, caro leitor: esse espectro energúmeno e troglodita, o qual, nunca em toda a sua parva e acanhada vida deve ter redigido uma só linha que merecesse ser lida me aparece do postmortem teimando em escrever. Sério?! E o pior é que não sei a quem posso ou devo recorrer. Já procurei padre, freira, bispo, pastor, mãe de santo, pai de santo, avô de santo, benzedeira, rezadeira, chocadeira, o escambau, e não teve jeito. O tal do Muriel não me deixa em paz. Se ao menos fosse um espírito mais evoluído, até que valeria mais a pena. Nem precisava ser ganhador de Nobel nem de Pulitzer. Bastaria ser minimamente alfabetizado. Até que toleraria psicografar alguém do quilate de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Oscar Wilde, Drummond, Dostoyevsky, Vinicius não, porque eu iria entrar na bebida e acabar me complicando por abusar da regra três, mas teria um bocado de gente que me orgulharia em transcrever. Entretanto, olha só quem foi que bateu a minha porta. Logo esse fantasma pretensioso, metido a escritor, mas sem pedigree, sem qualquer status ou apuro. Devo ter mesmo chama pra doido!

Bom, não adiantar reclamar, porque, se adiantasse já teria sido resolvido. Onde quer que exista no céu um departamento que cuide disso, os funcionários públicos devem ser oriundos de certo país sul-americano de envergadura continental e, por isso, não têm grande paixão por trabalho.

O fato é que apelido bom é aquele que parece com o dono mais do que o nome do dono. Como eu costumo dizer, apelido bom é aquele que pega. Tião Marreta, por exemplo, tinha um apelido com essas qualidades. Apelido este que ganhou por mérito. O Tião begins ocorreu numa noite quente há mais de duas décadas. O little Tião acompanhado por mais dois dos seus singelos amiguinhos tinham cheirado dois hectares bolivianos, bebido alguns litros paraguaios, fumado três alqueires pernambucanos e decidiram aprontar de tudo para espantar um tédio de envergadura nacional. Então, arrastaram três rapazes e uma moça, com os quais tinham topado saindo de uma festa, para um casebre na Barra do Ceará com o simples intuito de se divertirem.

Não estou seguro de que os jovens raptados poderiam alegar que se divertiram de igual forma. A moça, por exemplo, teve o azar de se manter consciente durante todos os momentos nos quais foi – nesta exata ordem – estuprada, sodomizada e espancada por todos os componentes da corriola do Tião. Enquanto isso, os rapazes eram sujeitos a experimentos conduzidos pela criatividade sádica do pequeno grupo.

– Tião, vamos apagar esse povo, Tião! – disse Andrevaldo já cansado de torturar o trio. – Já chega de brincadeira! Além disso, já estou com a mão dolorida.

– Que cabra frouxo esse tal de Andrevaldo! Só pode se chamar mesmo de Andrevaldo! – retrucou Tião se erguendo da sua cadeira. Um dos jovens que outrora tivera um aparelho nos dentes recomeçou a chorar quando entreviu pelo olho semiaberto a aproximação do mais truculento dos seus algozes.

– Eu tenho uma ideia, Tião. – sugeriu Erisberto. – Eu ouvi falar que aquele lutador, o Mike Tyson, mirava o murro na ponta do nariz do sujeito. Ele achava que poderia matar o cara se o osso do nariz enfiasse no seu cérebro. Que tal a gente tentar?

Os garotos gemeram como num coral, em uníssono, porém foram rapidamente emudecidos pelos seus carrascos.

– Calados! – ordenou Tião. – Calados e de pé, se não a garota morre. A garota morre na ponta da faca. Pega a faca, Erisberto! Se eles derem um pio, fura ela todinha. Transforma a cachorra num queijo. Como se chama aquele queijo todo furado, Andrevaldo?

– E eu sei lá.

– Você é muito burro mesmo, Andrevaldo! Como é que não sabe nem o nome de um queijo? Mas, não interessa! O que interessa é que ele fura, lógico que fura. É o que vocês querem? É o que vocês querem?

– Eu começo. – se candidatou o Andrevaldo. – Aposto uma meiota que consigo de uma cacetada só matar esse playboy. Deixa testar nesse aqui. Fica parado, rapaz!

Por mais que tentasse acertar o nariz do garoto dono de cabelos loiros empapados de sangue, Andrevaldo, de tão bêbado e cheirado, apenas acrescentava mais hematomas na cara do coitado que se esquivava o máximo que podia. – Segura este desgraçado pra mim, Erisberto! Segura a cabeça dele parada bem aqui. Isso! – solicitou Andrevaldo, mas o que se deu foi que ele acabou acertando a boca do parceiro na sua tentativa. Tião teve uma crise de riso com a trapalhada dos companheiros de tortura.

– Você só pode ser lesado, Andrevaldo! – reclamou Erisberto mostrando o sangue que saía profusamente do corte na sua boca! – Olha o que você fez!

– Ora, foi ele que se afastou. Tive lá culpa alguma? Agora é a minha vez. E vou lhe mostrar como se faz. – se gabou ele empurrando para a parede o mais baixo do grupo de amigos. – A parada é a seguinte, bonitão! Se você se mover só um tantinho, eu arranco fora os seus bagos. Está entendendo?!

Tião observava tudo com um sorriso felino repousando na boca, de onde um fio de baba escorregava sem resistências até o chão. Tião nunca se divertira tanto.

Erisberto teve mais sorte e conseguiu acertar, em cheio, um murro no meio do rosto do baixinho, que caiu sangrando generosamente.

– Ele morreu! Ele morreu! Ganhei a aposta. – comemorava Erisberto para a tristeza de Andrevaldo.

– Morreu nada! – gritou Tião. – Olha aí o cabra respirando! Ele só apagou, mas não morreu coisa nenhuma. Agora é a minha vez. Venha cá, magrelo! Encosta aqui! Não corre não se não eu acabo com a sua garota que agora já virou a nossa namoradinha. – Foi aí que Tião avistou a marreta que estava encostada num canto de parede ali do lado e, de improviso, a sacou satisfeito com o seu peso.

– Que é isso, Tião? – interveio Erisberto indignado. – Isso é sacanagem!

– Como foi que você disse, cachorro?! – esbravejou Tião atirando o outro com violência na parede. – O negócio aqui é descobrir se o osso mata ou não mata, não é? Posso testar com você, é o que você quer?

Antes que alguém pudesse reagir ou soltar qualquer palavra, Tião, de súbito, se virou e largou, com toda a força do braço, a marreta pesada no meio da cara do rapaz desavisado. O desgraçado, com o rosto esmagado, foi atirado de costas ao muro e escorregou silenciosamente até o chão, já sem vida.

– Viram? Viram? – indagou Tião sorridente. – Ganhei a aposta. Agora tragam os outros, um por um. A garota também. Quero testar com todos. Quero agora é treino!

 

 

*  *  *

 

 

O que dizer, caro leitor, quando a maioria do que se tem a dizer é coisa indizível?! Este é o nosso protagonista, meu amigo! Que figura singela, não é? Esse é o Tião Marreta cuja apresentação o nosso formidável espírito (seboso) Muriel tanto insistiu para que eu fizesse. Quem ele é? Um profissional marcado pela excelência? Um pai de família dotado de grande zelo? Um humanitário qualificado pela dedicação aos mais necessitados? Não, nada disso! Na verdade, um cretino, violador, sádico e assassino. Por que perco meu tempo com esse prodígio de gente? Porque o infeliz do meu fantasma de estimação assim o quer. Quer não, exige. Manipulável quanto gente nem mamulengo.

Bom…não vou mais ficar aqui me queixando e lambendo as minhas feridas em praça pública, porque, afinal, posso até ser um pau mandado de um encosto psicopata, mas ainda me resta alguma dignidade. E é com os resquícios desse orgulho em frangalhos que, agora, retorno à minha resenha.

 

– Como você vai querer tratar do nosso objetivo, chefinho? – perguntou o seu atual comparsa. Um galalau albino que, pela sua altura e evidente homossexualidade, havia ganho, desde pequeno, o apelido de Girafa. A alcunha lhe havia caído tão bem que ninguém tinha mais notícia do seu verdadeiro nome. Entretanto, caro leitor, não se iluda com a ternura do nome do parceiro do nosso querido Marreta. O Tião era um empregador que tinha exigências bem específicas e o albino correspondia a todas. Para resumir, Girafa era de uma crueldade sem nenhum requinte.

– O de sempre, Girafa. Você acua e eu bato.

– Eu nunca posso me divertir. – queixou-se Girafa serrando as unhas.

 

 

*  *  *

 

 

Agora, minha entidade tagarela me pede para apresentar o candidato a defunto pelas mãos do facínora Tião. O desinfeliz queria que me detivesse numa apresentação alongada, pormenorizada e detalhada do alvo encomendado, mas estou com preguiça e – quer saber? – não vou me delongar de jeito algum. Estou de saco cheio desse espírito vagabundo que não tem nada melhor a fazer senão me atormentar. Ele que, se quiser, encontre outro burro de carga para fazer esse frete. Vou ser objetivo e revelar apenas que o serviço se chamava Dra. Paula Duarte, era mãe zelosa de três filhos pequenos e era juíza estadual.

A data do sinistro havia, enfim, chegado. A noite já havia se apresentado ao seu batente fazia horas. Tião e Girafa estavam parados na calçada, defronte à casa da juíza, mas ocultos pela lixeira da casa ao lado. Tião sopesava seu instrumento de trabalho. Girafa fumava um cigarro trás do outro e acariciava o cano frio do seu 38 para tentar se acalmar.

O veículo esperado parou à frente da entrada da casa e, logo depois, foi acionado o portão automático. A abertura do portão era o sinal combinado para os dois criminosos agirem. Ambos tinham já o tinham feito várias vezes e sabiam exatamente o que cabia a cada um fazer. Tião usou sua marreta e atingiu a janela do lado do passageiro do carro. Enquanto isso, Girafa apontava a sua arma para a cabeça da mulher apavorada.

Tião se deu conta de que algo estava errado quando, aturdido, percebeu que, por mais que baixasse contra o vidro do carro todo o peso da sua marreta, a janela não quebrava.

– Atira, Girafa! – gritou quando se deu por vencido. – Apaga essa vaca!

Girafa não titubeou e disparou três vezes na direção da mulher deixando as cicatrizes dos tiros cravados no vidro à prova de balas do carro da juíza.

– Baixem as armas! – ouviram a voz logo atrás deles e depois outras vozes repetindo a mesma coisa. – É a polícia! Baixem essas armas!

– É fria, Tião! Armaram pra gente! – berrou Girafa. – Corre que eu te cubro. – gritou disparando contra os policiais, que revidaram enchendo o albino de chumbo, o qual despencou no chão sem um pio.

Tião também não foi poupado, mas, mesmo tendo sido atingido algumas vezes, conseguiu fugir saltando um muro que dava para um terreno baldio e seguiu cambaleante para uma favela. Os policiais ainda tiveram peito de seguir atrás do conhecido homicida. Todavia, por fim, terminaram frustrados com o sumiço do famoso assassino que tanto trabalharam para prender.

Assim termina a história de Tião Marreta. Ninguém sabe se o malfeitor sobreviveu ou não aos ferimentos causados pela tocaia que a polícia havia preparado para ele e para o seu cúmplice, o qual, ao contrário, não resistiu aos ferimentos e findou indo mesmo para o saco. Já do Tião, ninguém nunca mais teve notícia desde aquela noite, seis meses atrás.

Não sei ao certo o motivo pelo qual o espírito nefasto que me dita essas palavras insistiu tanto em registrar esses fatos, como também não sei se os nomes que me soprou no ouvido são, de fato, reais ou fictícios. Sei apenas que ficarei feliz se nunca mais tiver que tratar de Tião Marreta e de mais nenhuma das suas façanhas sinistras.

Só sei que conheço muita gente boa nesse mundo. Mas as ruins se superam. Por isso, por via das dúvidas, muito me alegraria se não escutasse mais nada desta ou de qualquer outra voz do além. Já disse: não acredito em espiritismo.

Nunca mais.

Homero Gurgel, Fortaleza, 17 de maio de 2010

 

 

*  *  *

 

 

Caro Dr. Crisóstomo Luiz,

 

 

Estou encaminhando para a sua acurada avaliação o paciente Homero Gurgel, 27 anos, solteiro, que foi trazido pela família ao meu consultório para realizar sessões de psicoterapia com queixas de distúrbios de personalidade.

Segundo relato dos familiares, Homero acusa estar sendo “possuído” por um “espírito maligno” com estranhas inclinações homicidas.  Após nove sessões, observei no cliente, evidentes traços de agressividade, de transtorno de dupla personalidade, ou até de esquizofrenia. Infelizmente, estou, portanto, me abstendo do seu acompanhamento em virtude de estar me sentindo continuamente ameaçada pelo seu comportamento violento.

Encaminho o mesmo para urgente acompanhamento psiquiátrico e, inclusive, indico internamento compulsivo até que o paciente possa demonstrar uma postura adequada para a vida em sociedade.

Postscriptum: no momento em que o paciente se dispuser a renunciar a posse  da sua inseparável marreta será já um bom indicador para sua evolução.

Agradeço a atenção com a qual sempre me dedica.

 

Atenciosamente,

Dra. Anamália Montserrat

 

Fortaleza, 23 de junho de 2010.

 

 

FRAGMENTO DO PALAVRAS AMARGAS, LIVRO PREMIADO EM 2012 COMO MELHOR LIVRO DE CONTOS – PREFEITURA DE FORTALEZA