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Storytelling e Vacinação – Narrativas e fake news

14 de dezembro, 2020 - por Max Franco

Já faz bom tempo que o método Storytelling vem sendo utilizado, em ampla escala, com o objetivo de estimular práticas benfazejas para a sociedade. A verdade é que não podemos fechar questões sobre as aplicações do storytelling, afinal a História demonstra que nem sempre essas utilizações foram positivas para a humanidade. Entretanto não podemos ocultar os bons resultados da metodologia.

Entre eles, vale salientar a aplicabilidade do storytelling como um recurso de fomento à higiene pessoal e à saúde pública.

 

Os primeiros vestígios do uso de vacinas estão relacionados ao combate à varíola no século 10, na China. Contudo, o princípio era outro. Os chineses trituravam cascas de feridas provocadas pela doença e assopravam o pó, com o vírus morto, sobre o rosto das pessoas. Nada muito bonito de se ver.

Foi só em 1798 que o termo “vacina” surgiu pela primeira vez, graças à experiência do médico inglês Edward Jenner. Ele tinha escutado rumores de que trabalhadores da zona rural não pegavam varíola. Depois da sua investigação, chegou à conclusão do motivo dessa imunização “natural” vinha da varíola bovina, uma variação que exercia menor impacto no ser humano. Jenner, então, introduziu os dois vírus em um garoto de oito anos e percebeu que os boatos tinham uma base científica. A palavra vacina se origina de Variolae vaccinae, nome científico dado à varíola bovina.

Edward Jenner foi o pai das vacinas. 

Em 1881, o cientista francês Louis Pasteur  desenvolveu a segunda geração de vacinas, dessa vez com o intuito de combater a cólera aviária e o carbúnculo. Foi ele que sugeriu o termo para batizar sua recém-criada substância, em homenagem a Jenner.  A partir de então, as vacinas começaram a ser produzidas em todo o mundo e se tornaram um das principais recursos para combate doenças.

Uma coisa merece ser dita quando falamos em vacinação: as vacinas sempre foram polêmicas. Desde as primeiras campanhas.

Em meados de 1904, eram já 1.800 pessoas internadas devido à varíola no Hospital São Sebastião, no Rio de Janeiro. Mesmo assim, as camadas populares rejeitavam a vacina. Todavia, se considerarmos o contexto da época, era até justificável que muita gente rejeitasse a ideia de ser inoculado com um líquido que vinha das pústulas de vacas doentes.

A Revolta da Vacina foi um motim popular ocorrido entre 10 e 16 de novembro de 1904 no Rio de Janeiro que, à época, era capital do estado e do Brasil. As campanhas de saneamento e vacinação lideradas pelo médico Oswaldo Cruz foram duramente combatidas por diversos grupos. Foi a publicação de um projeto de regulamentação da aplicação da vacina obrigatória no jornal A Notícia, em 9 de janeiro de 1904, que funcionou como o gatilho da revolta. O projeto exigia comprovantes de vacinação para a realização de matrículas nas escolas, obtenção de empregos, viagens de qualquer natureza, hospedagens em hotéis e, inclusive, para a realização de casamentos. Sugeria-se, outrossim, pagamento de multas para quem negasse a vacinação. Quando a proposta foi divulgada pela imprensa, o povo indignado promoveu manifestações que duraram uma semana.

A Revolta da vacina foi marcada por diversas narrativas contrárias à vacinação. Grupos antivacinistas existem desde do início da vacinação.

Rodolfo Teófilo, escritor e farmacêutico que residia em Fortaleza no início do século XX foi outro entusiasta da vacinação que não teve vida fácil.  Foram as epidemias de cólera que marcaram a história de Rodolfo. Em 1900, outra seca gerou uma nova onda de migrantes à capital do Ceará. Estes retirantes trouxeram fome e peste para Fortaleza. Teófilo, então, comprou dois bezerros, o material para a produção da vacina e começou a sua cruzada.  Antes de tudo, publicou no jornal que vacinaria gratuitamente. Em quatro meses, imunizou mais de 1.200 pessoas. Como muitos não o procuravam, ele montou num cavalo e levou a vacina à população da periferia da cidade.

Diferente do que ocorrera no Rio de Janeiro, Rodolfo não tinha o braço forte dos militares para persuadir as pessoas a se vacinarem. Ele tinha de convencer a população e, para isso, também fez uso de um método bastante aclamado atualmente. Isso mesmo: ele fez uso do storytelling. Como? Simples:  criou a figura de São Jenner,  que vivia próximo a um lugar onde os homens estavam apodrecendo vivos, um logradouro no qual todo dia era Dia de Mil Mortos (referência à epidemia de varíola de 1878, na qual morreram mil pessoas num único dia em Fortaleza). Um anjo teria indicado a Jenner um bezerro santo que aliviaria o sofrimento dos homens. Teófilo conseguia convencer os pobres, às vezes com são Jenner, noutras, com dinheiro do próprio bolso. Rodolfo Teófilo formou a Liga Cearense Contra a Varíola, que patrocinava o envio de ampolas para o interior do Ceará, gratuitamente. Rodolfo Teófilo é, infelizmente, um herói esquecido, enquanto Oswaldo Cruz é reconhecido nacionalmente.

 

Não é de hoje que personagens são criados e utilizados com a função de persuadir as populações a adotarem medidas  de higiene e de cuidados com a saúde ou alimentação. O personagem Popeye, criado em 1929, é outro exemplo de storytelling bem utilizado. O simpático marinheiro às turras com o galalau Brutus no intuito de proteger a namorada Olívia. O segredo de Popeye para enfrentar o grandalhão vem dentro de uma lata: espinafre. Assim que ingere o alimento, Popeye ganha músculos e adquire força capaz de derrubar o vilão. O desenho incentiva, portanto, as crianças a comerem verduras e modificarem as suas práticas alimentares.

A Turma da Mônica é outra referência quando se fala de aplicação do storytelling como ferramenta educacional e de incentivo às práticas de higiene. Para dizer a verdade, já faz tempo que os personagens da turma “mais querida do Brasil” estão engajados em campanhas que estimulam uma consciência de maior inclusão em relação à diversidade, preservação do meio ambiente, cidadania e mais recentemente sobre cuidados relacionados à pandemia da covid 19.

Para estimular as práticas de prevenção à contaminação pelo corona-vírus, até o Cascão superou o seu medo de água e lavou as mãos. 

E foi exatamente o mesmo método utilizado pela campanha criada pelo Grupo Exclam na década de 80 encomendada pelo Ministério da Saúde brasileiro. Nascia então o Zé Gotinha, uma mascote que foi criada com o intuito de tornar as campanhas de vacinação mais atraentes para as crianças. O Zé Gotinha é um exemplo de sucesso de aplicação do storytelling, porque se tornou um personagem agradável para o universo infantil. O Brasil é um dos países de referência quando se fala em vacinação. Um dos motivos desse sucesso é atribuído à invenção desse personagem que já quase 40 anos, o Zé Gotinha.

É de estranhar, porém, que aceitação pela vacinação tenha sofrido baixas nos últimos anos, principalmente em virtude de campanhas associadas a fake news e teorias de conspiração. A vacinação, afinal, é a medida preventiva mais consagrada e comprovada contra a disseminação de doenças já faz séculos e em todo o mundo. Não há justificativa científica para qualquer atitude contrária às vacinas.

Encontramos nesse campo, como existe em todos os outros, um embate de narrativas. De um lado, temos as informações, explicações, fundamentações científicas e a construção ou utilização de personagens empenhados em difundir as boas práticas de higiene e cuidados com a saúde. Do outro, em um canto meio escuro repleto de antivacinistas e de militantes da extrema-direita, encontramos obscurantismo, superstições, desinformação, fanatismo religioso, fake news e, certamente, ignorância a perder de vista.

É digno de nota que, no século XXI, depois de tudo que a humanidade já passou, com todo acesso à informação que temos, que ainda existam tantos terraplanismos em várias áreas. Isso só se explica se juntarmos as reflexões de dois gênios. Afinal, Umberto Eco afirmou que “As redes sociais deu voz à legião de imbecis” e Nelson Rodrigues completou “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”

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