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A pisada de bola

17 de dezembro, 2023 - por Max Franco

Todo mundo, mais cedo ou mais tarde,

senta-se para um banquete de consequências.

 — Robert Stevenson

A Vida é assim. Ela é pródiga em prover toda sorte de sucedimento e as coisas acontecem seja porque as fazemos suceder, seja porque sucedem por força de outrem e do desgramado do Acaso. De sorte que não estou tão seguro de que o Acontecimento cuja narrativa farei se deu apenas por inabilidade do autor que vos fala ou ocorreu porque o tal do Acaso foi hábil em causá-lo.

O fato é aquela bola veio como bolas devem vir: vagarosa e descrevendo a parábola perfeita. Ajustei o corpo inteiro para acertá-la de primeira. A mira estava feita, seria no ângulo. Goleiro saltaria para apenas para aparecer na foto. A comemoração – já planejada – seria à la Cristiano Ronaldo. Decerto até o outro time bateria palmas. Porém, tudo ficou no futuro do pretérito e não no bendito passado, porque em vez de acertar o pé de cheio, na verdade, errei o tempo, furando inapelavelmente a bola. Isso foi derivado de inabilidade, mas aí entrou em cena o infeliz do Acaso que direcionou a esfera para debaixo do meu pé. Resultado: pisei na bola, mas não pisei de boa, pisei terrivelmente, o que me fez girar no ar e me atirar perigosamente de costas ao chão. Na vã tentativa de evitar bater a cabeça, estendi a mão esquerda para amparar-me a queda. Por fim, a cabeça atingiu o chão da quadra fazendo um som oco. Mas pior ficou o pobre braço sacrificado – quiçá – por um bem maior. O braço estava indubitavelmente quebrado.

A pena e a comoção estavam estampadas no rosto de todos, enquanto a dor de um milhão de facas torturava meu débil membro. A Vida é assim, muita vez, em vez de glória, a agonia. A Vida é como diz aquela música do Só para contrariar Eu andei errado, eu pisei na bola”. É mesmo o que ocorre quando a gente anda errado (e pisa na bola!). A Vida costuma cobrar certas contas e tantas vezes o preço é alto.

Pois eu comecei a sentir logo as consequências dessa pisada na bola. Uma hora depois estava sentado diante da jovem médica no consultório do pronto-socorro.

– Meu caro, tenho uma notícia boa e outra ruim – falou a moça ao observar minha radiografia.

– Fique à vontade para dizer a que preferir primeiro – falei.

– Você quebrou o rádio.

– Podia ter sido pior, né? Rádios são baratos. Essa é a notícia boa?

– A notícia boa é que talvez não precisemos de cirurgia, mas terei que fazer uma redução.

– De preço? Aceito.

Ela riu, mas não foi um riso doce. Foi aí que entendi que se uma ortopedista lhe oferecer qualquer redução, talvez seja aconselhável rejeitar educadamente a oferta.

– Estou vendo que você torce pelo Vasco. – disse a moça ao ver a gloriosa Cruz de Malta na minha blusa.

– Desde que me entendo por gente, ou mesmo antes.

– Você preferia ter caído ou o Vasco?

Olhei minha mulher de soslaio e respondi sem pestanejar: é lógico que eu ter caído é melhor!

– Eu sabia – disse a Rebeca.

– Mas você não sabe exatamente o que é uma redução.

Meia hora depois, estava sendo segurado por um enfermeiro de quase dois metros enquanto tentava chutar a médica que puxava meu braço quebrado para pôr meus ossos no lugar. A sonoplastia dos ossos se movendo é algo que levarei para o túmulo. (E a dor quase me leva!)

Você – caro leitor ou cara leitora – deve estar pensando que tanto sofrimento deu resultado e saí do hospital todo serelepe depois da tal redução. Mas isso teria ocorrido se a Vida fosse uma comédia romântica. E a Vida não é. A verdade é que a redução não resolveu muita coisa e, por isso, só saí depois da cirurgia e de colocar uma placa de metal com pinos no braço.

– E agora – perguntou novamente a médica – o Vasco ou você?

– Doutora, eu caí e vou sofrer apenas por alguns dias…

– Entendi.

– Eu sabia – disse de novo a Rebeca.

Hoje, fora do hospital, digitando com apenas uma mão, me lembro do garoto que fui. Na década de 80, havia essa série estadunidense chamada “O homem de seis milhões de dólares”, que se tratava de um piloto que, depois de um grave acidente, havia passado por diversas cirurgias e se transformado num ciborgue, meio homem, meio máquina. Steve Austin tinha superpoderes, porque tinha as pernas, um olho e um braço biônicos. É claro que toda garotada da época queria ser o homem de seis milhões de dólares. Pois olha quem hoje é parte máquina!!! A Vida é mesmo – tantas vezes – uma surpresa. E uma lição!

Afinal, como diz a tal música:

– Mas a gente aprende, a vida é uma escola!