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Ferramentas e histórias

22 de novembro, 2022 - por Max Franco

Os seres humanos ergueram civilizações porque foram capazes de criar ferramentas e histórias.

Com as ferramentas, construíram as coisas das quais necessitavam.
Com as histórias, conseguiram motivar as pessoas a cooperarem.
Essa é a questão central: o ser humano coopera porque acredita e, muitas vezes, porque acredita em ficções.
O ser humano acredita, por exemplo, em deuses e, por incrível que pareça, que estes deuses têm comunicação direta apenas com alguns privilegiados. Dessa forma, desde de tenras eras, o homem acredita em xamãs, pajés, sacerdotisas, oráculos, profetas, videntes, babalorixás, rabinos, imãs, beatos, santos, padres,  monges, pastores e na maioria das pessoas que afirma que é representante de Deus na terra tem o seu whatsapp. Faz tempo e em muitos lugares, gente é bicho que crê.
E gostamos de crer. Por isso, não é natural desacreditar. Ninguém acredita muito no descrente. E, mais do que isso, ninguém crê demasiado que o descrente, de fato, descreia. “Como assim não crê em nada? Isso é impossível!”
– Crer em nada é o tal do niilismo e quem acredita em acreditar em algo, acredita em algo.
è por isso que o niilista é sempre incoerente, porque crê que deve, em qualquer ocasião, descrer.
O fato é que os bichos são bem mais realistas e, geralmente, acreditam apenas no que veem, tocam e conseguem cheirar.
A natureza se não é ateia, é – no mínimo – agnóstica.
E porque cremos, fomos capazes de erguer cidades e catedrais.
E, da mesma forma, erigimos instrumentos de tortura e campos de concentração. Tudo porque acreditamos em algo ou em alguém.
Carl Sagan dizia: Eu não quero crer. Quero saber.
O problema é que a linha entre crer e saber é tão tênue que difícil perceber o limite entre um e outro.
O ser humano já acreditou em tanta coisa estapafúrdia. Cremos em sacrifícios de animais e de seres humanos, em duendes e fadas, em deuses e demônios, em escravidão e supremacias de raça ou de classe social. Como saber, então, se o que cremos merece crença ou é apenas crendice ou superstição?
Acreditamos em leis, mitos, guerras, pátrias, causas, lendas e mentiras de todas as medidas. De tal forma que mentirosos contumazes conseguem se transformar em líderes de grande poder. E como acreditamos neles.
Há sujeitos que foram muito espertos na história da humanidade. Um deles foi aquele que disse “daqui desta montanha até aquele rio, tudo é meu!”. Outro foi aquele que falou “existe um Deus e ele é muito poderoso. E quer saber? Ele fala comigo. Se você escutar o que eu digo e fizer o que eu oriento, o Deus vai gostar de você e lhe presentear das melhores coisas, nessa vida e, melhor, depois que você morrer!”.
Ainda há um indivíduo ainda mais sagaz. É aquele que se declara rei, imperador, faraó, czar, xeique ou qualquer monarca que deve ser obedecido em todas as ocasiões. Afinal, ele é o escolhido de Deus por nascença ou por mérito, ou algo que possa ser chamado de mérito.
Todas essas pessoas só conseguem exercer o seu poder porque convencem outras pessoas, seja pela força da narrativa, seja pela força da força, seja, na maioria das vezes, pela ação de ambos.
O que ocorreria se simplesmente disséssemos “eu não acredito em você”? Se os homens e mulheres do passado tivessem rejeitado a ideia de que alguém poderia ter terras? E se um tipo, lá atrás, tivesse protestado quando alguém lhe falou que sabia qual era a vontade de Deus? E, mais ainda, se determinado grupo não tivesse aceitado a ideia de reis e das respectivas genealogias?
A verdade é que fizemos muito do que fizemos porque quisemos crer.
E ainda fazemos porque cremos.
Mas cremos mais do que sabemos ou exatamente o contrário?
O que cremos nos hoje em dias que não mereceria qualquer crédito?
O homem atual é menos crédulo do que os caçadores-coletores da pré-história? É menos supersticioso do que o homem medieval ou apenas mudamos os endereços das acreditanças.