http://www.maxfranco.com.br/cronicas/se-eu-fosse-voce-marca-de-joias/

Materialista?

22 de agosto, 2016 - por Max Franco

 

– Se eu sou apegado a algo, uma coisa, um objeto, eu sou materialista? – perguntou abruptamente o homem sentado ao meu lado no ônibus.

– E se fosse materialista, seria um problema? – retruquei, sem muita vontade de esticar o papo com o estranho. – Acho que todo mundo hoje é materialista, não? Uns mais, outros menos. Materialismo é a nova religião.

– Mas, eu não quero ser materialista. Não gostaria de ser…

Eu me calei, torcendo para que ele desse por acabada a conversação. Tinha minhas próprias preocupações para me inquietar com as filosofias alheias.

– É que eu estava numa lotérica, na hora do almoço, quando entrou um cara armado. Um ladrão, na verdade. Era um assalto. Ele mesmo disse: “É um assalto! Quero todo mundo quieto se não leva bala!”

– Você foi roubado? – perguntei, subitamente interessado.

– Ele chegou e anunciou o assalto levantando a blusa. Tinha uma arma. Fiquei estático. E então, ele foi pegando a grana de todo mundo. Grana, relógios, celulares… Eu entreguei tudo. Quer dizer, quase tudo. Ele me pediu para esvaziar os bolsos e eu hesitei. Não me mexi.

– Você ficou paralisado de medo?

– Mais de coragem do que de medo, mas aí ele me bateu. Pegou a pistola e me bateu na cabeça. Está vendo? Feriu. Doeu uma barbaridade. Mas, mesmo assim, não me mexi.

-Por que, homem? O que você tinha de tão valioso que valesse a sua vida?

-Era uma aliança. Nada de extraordinário. Mas um anel de noivado. Eu economizei por meses. Às vezes, sem almoçar. Outras, voltando para casa à pé, chegando cansado e morto de fome. Tudo para comprar para a Ana um anelzinho de noivado. Ela merece, sabe? Já tinha me pedido várias vezes. Queria aquela coisa de filme americano. Que eu me ajoelhasse e a pedisse em casamento. Sabe como é? Queria mostrar para as amigas do trabalho. Queria propaganda do nosso noivado.

– Entendo perfeitamente. Mas, então, o cara levou a joia?

-Ele percebeu o volume no meu bolso e meteu a mão. Eu não pensei duas vezes e segurei a mão dele. Segurei com força.

-Você é louco…

-Acho que sou, porque, mesmo me tremendo de medo, eu não soltei a mão do sujeito. Foi aí que me chutou, passou uma rasteira e eu caí no chão. Ele pegou a arma e me encostou na cabeça. Eu tinha certeza de que iria morrer. Todo mundo gritou na lotérica. Acho que mais de susto do que protesto. “Entrega o negócio, moço!”, disse a velhinha perto do caixa. “Não vale a pena morrer por besteira, homem!”.

-Ela tinha razão. Mas, me diz, o que aconteceu?

-Eu caí no choro. Me senti tão abandonado, tão indefeso que não consegui segurar as lágrimas. Chorei apertando a caixinha do anel. Sabe por quê? Porque ela merecia. Ela ia ficar tão feliz com o presente. Como eu iria privá-la de um prazer que ela tanto desejava? Isso não é materialismo, é?

– Não. Você não estava brigando pela coisa. Não era besteira. Há coisas que são maiores do que coisas. Há coisas com significados maiores do que elas. Aquela joia tinha um valor maior do que o seu preço. Havia toda a renúncia que você tinha feito, todos os sacrifícios e, principalmente, todo o amor que você tem pela sua noiva. Isso não é materialismo.

-É verdade. Você me entende. Que bom!

-Mas, ele a pegou e foi embora.

-Ele arrancou das minhas mãos e saiu correndo.

-É um pena. Eu sinto muito…

-Não sinta. Estou indo agora mesmo na delegacia para pegar a minha aliança. Quer dizer, a aliança da Ana.

-Como assim?

-Alguém a deixou lá. Deixou também a minha carteira, sem dinheiro, é claro. Mas, um cara deixou o meu anel lá. Estou feliz porque estou indo buscar.

-Será que foi o ladrão que a devolveu!? Ele se arrependeu?

-Eu não tinha pensado nisso. Mas, você falando… Só pode ter sido isso.

– Os brutos também amam, meu amigo! – lhe disse, me lembrando do famoso filme. – Ele percebeu o seu sofrimento e teve remorso. Você é um sortudo! Pegou um ladrão com coração.

– Você tem razão, eu sou o sujeito mais sortudo do mundo. – disse o homem antes de saltar do ônibus.

Ele ainda sorria quando se perdeu na multidão.

E eu, também, continuei sorrindo ainda por um bom tempo com a inusitada história do estranho me acompanhando dentro do caos da cidade grande. Ninguém é imune ao amor?