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Ritos de passagem

31 de outubro, 2017 - por Max Franco

Ritos de passagem são comuns em muitas culturas. Eles existem há muito tempo e são importantes na passagem da adolescência para a idade adulta no sentido de promover uma fronteira psicológica entre as fases e, portanto, o desenvolvimento de uma mentalidade mais madura. Há diversos tipos de rituais, desde as mais inocentes, na cultura ocidental, até práticas realmente assustadoras.
Os índios algonquinos, no Canadá, por exemplo, enjaulam seus jovens e injetam neles um composto cem vezes mais forte do que o LSD. Vários daqueles que conseguem voltar a si, se esquecem de todo o seu passado. A intenção era fazê-los se esquecer da infância para se tornarem homens. Mas, pegam tão pesado que alguns perdem até a capacidade da fala. Em Vanuatu, por sua vez, os garotos das tribos sobem numa torre de 30 metros, com cipós amarrados nos tornozelos e se atiram. Quando o salto é feito de modo correto, o garoto chega a encostar os ombros e a cabeça no chão. É bom lembrar que os cipós não são elásticos. Então, podemos imaginar o risco. Há uma tribo da Amazônia (Satere-Mawe) que coloca a mão dos seus garotos em formigueiros. Outra (Matis), impõe uma verdadeira saga que começa com o envenenamento dos olhos, chicotadas, surras, e, no fim, mais uma inoculação de veneno, dessa vez, de sapo. Só depois desta sequência de sofrimentos é que ele está autorizado a caçar com a tribo. É como eu costumo dizer: crescer dói, mas em algumas culturas, crescer dó mais ainda.
A nossa cultura tem também os seus ritos de passagem. A festa de debut ou dos 15 anos é um destes rituais, mas está longe de ser um processo doloroso. Talvez, possa ser para pais, de tão caro que costuma ser, mas, para a adolescente, jamais.
Não obstante, eu que trabalho com Educação há tantos anos, me arrisco a dizer que há, ao menos, um fato que pode ser encarado como um doloroso ritual de passagem comum na nossa cultura: entrar num curso concorrido de uma universidade pública.
Eu tenho um exemplo em casa. A minha filha tem 17 anos e viveu toda sua vida com as comodidades de uma garota de classe média. Não sofreu grandes limitações, mas também não recebeu muitos privilégios. Teria tudo, portanto, para ser uma jovem – como tantas que eu conheci – acomodada ou, para não dizer, preguiçosa.
O fato é a Ingrid estuda, todos os dias e desde o início do ano, no mínimo, nove horas por dia. Eu estou falando “estuda”, não “assistir à aula”. Ela abriu mão de tudo do qual gostava. Não assiste mais às suas séries. Não fica nas redes sociais. Não lê mais os livros que ama. Não-muita-coisa. A Ingrid come, dorme e estuda. Quem a obriga a fazer isso? Ninguém! Por que ela faz? Porque ela quer.
Nestes dias que precedem o ENEM, vejo como ela está desgastada pelo sofrimento e pela ansiedade. Vejo o que o medo e o nervosismo provocam no seu comportamento. Como pai, lógico, também sofro. No entanto, ao lado da dor, assisto a outro fenômeno: ela não é mais quem era. O esforço e a disciplina aos quais ela se impôs já realizaram nela uma mudança indelével. O que me faz concluir mais uma coisa: não há, realmente, nenhum outro motor de amadurecimento tão potente quanto é a dor.
É lógico que ninguém deve ser sádico ao ponto de provocar dor, levianamente, aos filhos. Nem masoquista para buscar para si. Equilíbrio é essencial, mas, observa-se facilmente os danos provocados àqueles que fogem dos obstáculos da vida. Um sujeito mimado tem tudo para ser um derrotado no futuro, porque lhe falta coragem, disciplina e couraça. É isto que a dor patrocina: uma armadura. Não é qualquer coisa mais que lhe atinge ou debilita. É o que meu pai dizia: o que não mata, engorda.
Ritos de passagem, então, são necessários. Campbell trata disso na sua famosa “Jornada do herói”. Um ser humano, para crescer, carece – algumas vezes – de morrer e ressuscitar. Precisa da mansão dos mortos, de enfrentar os seus respectivos dragões, monstros e fantasmas.
Não posso negar: claro que desejo que a minha filha passe no seu ENEM e conquiste suas vitórias. Contudo, já a vejo como vitoriosa. Como uma enorme vitoriosa. Ela já provou o seu valor. Não precisa mostrar mais nada. Ela se impôs uma meta e lutou até o final, com disciplina e muito esforço. Sei a pessoa que ela é. O mundo também saberá como é uma criatura extraordinária. Das melhores.