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Quisera escrever

06 de outubro, 2016 - por Max Franco

Ainda espero o dia, feliz dia, em que vou escrever.
Isso mesmo: tanta gente quer tanta coisa e quer fazer também tanta coisa, afinal gente é coisa de querer. Eu, particularmente, quero. Se todos são querelantes, por que eu também não o haveria de ser? Claro que quero. Um dia, quero escrever.
Neste dia, quero escrever sobre o que versa e sobre cada pequena coisa, e sentimento, e detalhe que a minha alma toca. Sobre coisas tão minhas mas tão minhas que não podem ser mais minhas apenas minhas, e sim desavergonhadamente explícitas, despudoradamente expostas nas vitrines do mundo. Pois aprendi e sei que o que é mais profundamente meu é tão grande e intenso que me transborda e escapa. E, portanto, acaba sendo também alheio, mais que alheio, de todos. Sentimentos, afinal, são lençóis freáticos que correm no subterrâneo das profundezas humanas. Não perguntam de quem é a terra que invadem. Não respeitam fronteiras. Não correm para casa no fim do expediente. Não fazem intervalos de almoço.  É que sentimento, rio caudaloso, inunda e arrasta o que lhe aparecer pela frente.
Quisera escrever coisas simples, quem sabe sobre um passarinho dono de um canto triste. Quisera escrever sobre a velha da calçada. Retinas no pretérito. Pupilas no presente. Adoraria escrever sobre o olhar ávido do menino da vitrine da loja de brinquedos. Quero escrever extraordinariamente sobre o ordinário. Quero escrever o jamais escrito, mas prescrito. Quero escrever ao amanhecer e também quando anoiteço. Quero rejeitar os ditames e eleger o proscrito. Quero o inescrevível, indescritível e o indiscreto.
Quero escrever como alguns, mas diferente de todos.
Porque só sabe mesmo bem escrever quem sabe ler e traduzir o vocabulário da própria alma. Porque alma boa é a que tem repertório. Alma com ficha corrida. Alma com curriculum vitae. Alma com programa de milhagem. Pois há quem tenha ouvido absoluto, eu tenho alma absoluta. Sinto tudo, demasiado, sempre e tudo me dói , me soa vibrando ininterrupto na alma.
Quisera escrever sobre almas. Porque não sei se acredito em espíritos, mas há almas nas quais se pode confiar.
É sobre isso que quero escrever. Sobre tudo e sobre nada. Sobre o nada que se tudifica e, jamais, sobre o tudo nadificante, nadificável…
Quem me dera – um dia – escrever com os pés plantados no chão e cabeça ancorada nas nuvens. Escrever contagiado das ebulições humanas. Escrever embriagado de poesia. Escrever padecendo de metáfora. Como escreviam aqueles do Olimpo, os deuses das palavras. Das mais divinas e sagradas e perfeitas palavras.
– Ó, deuses, tomem-me! Sou vosso servo! Tomem-me!