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Os tombos da vida

16 de dezembro, 2016 - por Max Franco

O ano era 2004.

O lugar, Barcelona. Especificamente, plaza de toros de Barcelona.

O resultado: você vai ver.

Sim, eu pequei, preciso confessar. Já fiz coisas que não repetiria na minha vida. E, entre estas, já frequentei as famosas corridas de toros, as quais chamamos de touradas.
Sei que é politicamente incorreto. Na verdade, não só politicamente, mas ecologicamente, humanamente, animalmente… Mas, fui. Quem não tiver pecado procure a sua pedra.  O problema é que tenho o péssimo hábito de topar com muita gente perfeita e santa com boa pontaria ultimamente. Então, umas pedras a mais, outras a menos, não me fazem mais muita diferença. Estou quase me acostumando com os ferimentos. O mundo olha e pensa que você é dálmata, mas é hematoma.
Neste evento errado, porém, eu e meu longevo amigo, Marcelo Veras, acompanhamos uma cena de causar espécie, algo para se guardar na memória.
O toureiro já havia trocado a capa rosa pela vermelha, anunciando que o animal gozava seus últimos instantes de vida. A cruel espada,desembainhada, apontava para o seu flanco. Faltava agora o golpe final, apenas.
Mas, a vida tem o próprio script e o touro, também, tinha o seu, e era o de resistir até o final. Foi que o bicho, que já parecia batido, surpreendeu a todos levantando o toureiro dois metros do chão e o atirando quase inerte na arena. Não fosse pela turma do “deixa disso” seria morte certa.
O público prendeu a respiração enquanto os palhaços distraíam o bicho. O toureiro, se arrastando, voltou minutos depois aliviando a plateia. A calça tingida de sangue mostrava um rasgão na perna de alto a baixo.No rosto, uma expressão calcária de dor e de algo mais. Uma coisa ancestral que eu chamaria de determinação, mas com notas de medo. O medo da fera, o mais antigo dos sentimentos.
A assembleia uivou quando o jovem, caminhando com grande dificuldade, fez o touro “bailar” mais um pouco para, enfim, conjurando um clímax de emoção coletiva, cravar de uma só vez a espada, até o cabo, no seu lombo.
Eis a história que gostamos de acompanhar. Aquela onde o herói desce a mansão dos mortos e ressuscita glorioso. Todos amam superações, porque quanto maior a queda, maior a ascensão.
São sobre histórias assim que nascem os épicos e as crônicas eternas, como a Ilíada e e a Odisseia de Homero.
Tento me lembrar deste jovem audaz nos momentos nos quais me vejo também estirado no chão, banhado pelo próprio sangue misturado com a poeira, amedrontado e confuso, com uma besta de meia tonelada me encarando e desejando a minha morte. Tento imaginar que haverá este momento posterior, e que, neste instante, o vitorioso novamente será bípede, parecerá comigo e, principalmente, não terá chifres.